quinta-feira, 17 de março de 2011

As pessoas que ninguém quer ver (parte 2) (e um suposto problema numa suposta Cidade)

     Antes de iniciar esta postagem preciso comentar algo. É absurda a forma como as coisas são facilmente deturpadas e manipuladas. Basta alguém dizer algo de forma levemente tendenciosa ou leviana para um detalhe virar caso... uma virgula virar ponto de exclamação! Uma mentira virar verdade. Para exemplificar isso farei uma série de suposições e, assim como nas novelas, qualquer semelhança com a vida real ou com fatos e pessoas é mera coincidência...


manifestação de estudantes em frente à Câmara de Araraquara
     Suponha que numa Cidade com cerca de 200.000 Habitantes, pelo ano consecutivo, os casos de Dengue sejam elevados, chegando em 3 dos 4 anos à níveis de epidemia. Suponha também que, apesar de muito bem cotada nos institutos que supostamente medem os índices de desenvolvimentos social, econômico, humano e ambiental, esta Cidade (supositória, é lógico) possui inúmeros supostos problemas de saneamento, de saúde pública, de transporte, de educação, de meio ambiente.... Como qualquer Cidade moderna. Suponha ainda que parte destes problemas seja supostamente desprezada (e mascarada) pelo poder público e principalmente por aqueles que deveriam elaborar as supostas “políticas públicas”. Teremos que continuar supondo... Então, suponha que nesta Cidade supositória existam criadouros em quase todos os imóveis. Do terreno sujo à casa bem cuidadinha da vovó... pra todo lado que se olha se vêem pessoas que não estão nem aí... ninguém cuida da própria casa e alguns, além disso, ainda jogam lixo no chão, entulho nos terrenos, lixo e esgoto nos bueiros e botam fogo no mato... Os supostos vereadores(as) e políticos(as) profissionais desta suposta Cidade estão muito supostamente ocupados em aumentar os próprios salários e aumentar o número de pessoas supostamente mamando no Estado, desta suposta forma fica difícil acompanhar as reais demandas desta suposta População, ainda assim, alguns poucos supostos vereadores e vereadoras tentam fazer um suposto trabalho de suposta contestação e argumentação mais próximos da suposta realidade. E suponho que estas coisas (oposições e situações) mudem muito de lado de um governo para outro. Nesta Cidade, como em qualquer outra que você possa estar supondo, há funcionários públicos. Como em qualquer lugar, seja no meio público ou no privado, há gente trabalhadora e honesta e há aqueles que sejam, vamos dizer, supostamente “folgados”. Sempre há o supostamente “puxa saco” e sempre há supostas injustiças. Sendo assim, suponhamos que uma parte dos funcionários responsáveis pelo controle da Dengue desta Cidade, em determinado momento, tenha supostamente deixado de cumprir suas supostas obrigações. Cada um pelos seus supostos motivos, justos para alguns, falhos para outros, alguns dentro da lei, outros fora dela. De qualquer forma eles até tinham alguns supostos motivos: supostamente não recebiam a insalubridade; supostamente ao fazer arrastões nos finais de semana recebiam supostamente muito menos que os supostos funcionários das supostas terceirizadas (e para trabalhar supostamente mais); o prédio onde eles supostamente trabalham é uma suposta vergonha; o salário é supostamente pouco; o desgaste físico e emocional é supostamente grande; o representante político deste suposto local não dá o suposto exemplo... mesmo supostamente assim, responsabilidade é supostamente responsabilidade. Tenho que lembrar que são meramente suposições. Suponha que por algum motivo dentre os poucos funcionários que não levam supostamente muito à sério seu suposto trabalho, alguns cometeram algum suposto erro ou agiram de forma supostamente equivocada. Nesta suposição, suponhamos que sejam abertos alguns processos administrativos (diferentes do meu) para apurar supostos fatos como: suposta falta não justificada em arrastão da suposta Dengue; supostos atrasos na entrada em serviço (isso já é supostamente descontado do suposto pagamento); deixar de supostamente executar tarefas cotidianas ou executa-las de forma supostamente faltosa... Enfim, supondo serem estes motivos adequados para abertura de supostos processos ou sindicâncias, e não discordo disso, levando-se em conta que em alguns casos a ausência possui supostamente justificativa legalmente correta e que o(a) supostamente acusado(a) pode estar sendo vítima de um suposto erro ou injustiça, ainda assim é muito inimaginável supor que um governo teria coragem de dizer que isso ... estes poucos e importantes servidores públicos ... seriam os supostos responsáveis por uma nova suposta epidemia. Porém, mesmo antes das apurações efetuadas, os casos de Dengue começaram a supostamente pipocar por todos os lados... a População sendo supostamente “comida” por mosquitos de dia e de noite... a zeladoria desta Cidade estaria supostamente precária... a População estaria supostamente vendo mato, lixo, entulho, mato, lixo, entulho e buracos... a relação entre o suposto poder público e seus supostos subordinados estaria supostamente desgastada graças a supostas perseguições e falas supostamente agressivas e equivocadas na imprensa... Como explicar outra suposta epidemia? Não dava para supostamente evita-la? Como anda o lado jurídico do Sistema de Vigilância desta suposta Cidade? Os Fiscais receberam capacitação jurídica para trabalhar com supostas Leis? Se, supostamente, não, qual o suposto motivo? (seria não aplicar a suposta Lei?...). E as condições de trabalho destes supostos funcionários? Atende ao que supostamente rege a CLT? Os supostos responsáveis pelas irregularidades, mesmo quando são os mesmos supostos palhaços de sempre, são autuados? Mesmo sendo supostos empresários e comerciantes? As autuações viram supostas multas? Viram mesmo? O cara paga? Tem certeza? Olha!!! Sei não hein... Para a maioria das pessoas o problema da Dengue nesta Cidade supositória seria causado por uma série de fatores. Mas, para o bom suposto político profissional, tirar o suposto fiofó da suposta reta é uma grande habilidade... chega ser um DOM! No lugar de compreender a situação e se elaborar um plano para médio e longo prazo; se construir uma sede adequada para as supostas atividades de Vigilância em Saúde (e são muitas); se valorizar os supostos profissionais envolvidos nas atividades; de buscar engajamento com os outros setores supostamente envolvidos... no lugar disso tudo, nesta Cidade que estamos supondo, escolheram outro caminho. Escolheram 12 supostos funcionários e tentam supostamente apontar para eles a causa da suposta epidemia de Dengue dentro da sua suposta casa, dentro dos bueiros do seu suposto bairro, dentro das supostas creches com crianças e funcionárias(os), postos de saúde e escolas, dentro dos supermercados e supostas lojas de roupas, dentro dos supostos ferros velhos, dentro das supostas indústrias e dos shoppings... querem supostamente dizer que é por causa de uma dúzia de supostas pessoas que teremos uma suposta epidemia, gente supostamente sofrendo, gente correndo risco de supostamente morrer... entendi. Essa foi muito supostamente boa mesmo... supostamente sensacional. Agora, nesta Cidade onde supostamente isso foi supostamente tramado, os supostos funcionários, que já não eram bem recebidos por uma larga parcela desta suposta População, serão supostamente taxados de vagabundos, incompetentes e outros palavrões. Genial a estratégia. Todos acreditarão que a culpa é supostamente destes funcionários supostamente acusados. Desta forma, quem supostamente ganha R$4.000,00 para supostamente resolver a equação da Dengue (e supostamente não entende nada disso e não participa do trabalho cotidiano) e  os responsáveis pela suposta Saúde e pela suposta Administração deste suposto Município se isentam das supostas críticas e cobranças. Supostamente lindo!!! Comovente!!! Destroem e brincam com as supostas vidas de algumas supostas pessoas, jogam supostamente sujo, supostamente mentem, supostamente escondem problemas, supostamente distribuem cargos, horas extras e vantagens, supostamente fazem mau uso dos recursos, supostamente desrespeitam a CLT, supostamente não resolvem os problemas de suas supostas alçadas e supostamente querem culpar o(a) suposto(a) trabalhador(a) da suposta base... o que já é o mais supostamente pisado e explorado. Era só o que supostamente faltava. Ainda bem que são só suposições... Supostamente atribuíram culpa à População e a alguns poucos funcionários. Supostamente pergunto eu: As escolhas políticas, a atenção e o direcionamento dado aos supostos problemas desta suposta Cidade foram eficientes? Deram resultado ou foram e estão sendo um suposto fracasso? Se teve um ano de suposta estabilidade, de quem foi o trabalho supostamente realizado? Qual o resultado até agora do suposto trabalho prestado por este suposto governo? Perguntas supostamente difíceis de responder...

Comentário final sobre este assunto:

     Você sabe quem paga as indenizações trabalhistas quando um funcionário de uma prefeitura qualquer passa por assédio moral, perseguições e ilegalidades? Você. É isso mesmo. Toda vez que representantes de administrações públicas cometem com seus funcionários atos entendidos pela Justiça como indenizáveis, você paga a conta. São processos de R$30.000,00, R$50.000,00, R$100.000,00... (e não são poucos). A perseguição e as ilegalidades foram praticadas por um grupo de pessoas ou por uma pessoa só, porém a conta é nossa. Que legal! Sendo assim, o administrador público pode fazer qualquer cagada com seus subordinados que tudo bem, se o cara botar no pau, o Povo paga. Pra que um político vai se preocupar em respeitar a Lei ao perseguir seus opositores? Ele é o Poder e o custo dos seus erros passam para o poder dos outros... Maravilha. Creio que isto precise mudar urgentemente!!! Esta conta não pode mais ser do Povo!!!

Essa tava intalada mesmo... Desculpem.
(minha 1ª postagem dá um bom exemplo de perseguição)

Curiosidade: Numa greve onde 2 dos quase 150 funcionários da Vigilância de Araraquara haviam aderido, um Juiz achou de suma importância que estes 2 voltassem ao trabalho para que todos os esforços fossem usados contra a Dengue. Pois bem. Eu era 1 dos 2 importantes servidores, mas agora, mesmo com a coisa pegando fogo, mesmo sem um motivo real, querem que eu fique em casa escrevendo, lavando louça e cozinhando... tudo porque algum “perito” me considerou “perigoso” no meu ambiente de trabalho. Meu processo é por ter falado coisas que um monte de gente já falava e fala abertamente. Desabafei e dancei. Ok! Não me importaria de estar trabalhando, pelo contrário, minha esposa é linha dura, tenho que manter tudo arrumadinho em casa, além disso tenho que limpar a calha, podar a árvore, cortar a grama, limpar a caixa d`água, fazer uns serviços de pedreiro, arrumar a antena, trocar umas telhas quebradas.....


IMPORTANTE: Todo o texto foi elaborado por mim tendo por base minhas experiências profissionais na área de Vigilância em Saúde e Meio Ambiente. Os registros fotográficos também são de minha autoria. Quando houverem informações ou imagens de outras fontes, elas serão mencionadas. Não me oponho ao uso deste material parcialmente ou na integra para fins educativos ou para a confecção de trabalhos escolares, porém, por uma questão de respeito, peço que qualquer imagem ou trecho de textos retirados deste Blog mencionem o link:


Obrigado.

     Voltando ao tema que me coloquei a trabalhar numa série de postagens, descreverei 2 casos muito diferentes e emocionantes. Sempre tento descrever com os detalhes que guardei em minha memória as coisas que tenho postado. Algumas cenas que vi eram tão impressionantes que ficaram em minha mente como se fossem fotos. Não sei se assim como as fotos elas desbotarão com o tempo... nem tampouco se se apagarão, o que sei é que de alguma forma, os fatos que relato me marcaram muito e sempre me fazem pensar na vida... no que espero dela... no quanto tenho para oferecer... no quanto realmente ofereço... e sempre, sempre mesmo, fico incomodado. Deve ser isto que me faz ir adiante...

Caso da Ângela

     Para iniciar devo dizer que o nome da Ângela não é Ângela. Não é meu objetivo expor pessoas ou lugares, apenas fatos e memórias.

     Certa vez, recebemos uma ocorrência com forte conotação de problema social. Quando digo isso tenho franco conhecimento que questões sociais, ambientais e de saúde andam sempre ou quase sempre juntas. O que me dava esta certeza era o relato da pessoa que fez a notificação: Casa com ratos (pequenos e grandes) onde mora uma moça usuária de drogas com um recém nascido, um senhor de idade e dois adolescentes. Sempre temos o hábito de fazer contato pessoalmente com quem pede o atendimento. Isso facilita a compreensão dos fatos e evita que o fiscal entre em “brigas de vizinhos”, o que é muito comum também. Procuramos a Notificante. Era uma senhora negra meio gordinha com cerca de 60 ou 65 anos. Tratava-se de pessoa muito bem esclarecida e super simpática e agradável. Sua casa estava impecável. Ela disse ter visto e ouvido ratos no local, mas nós não encontramos fezes de roedores (rato não gosta de lugar limpo e arrumadinho, em lugares assim não há restos de comida. Quem gosta de bagunça e sujeira é o ser humano. O rato gosta é de comida!) Ela explicou que seu imóvel era desmembrado de forma que eram três residências distintas. Nos fundos vivia uma rapaziada jovem entre 19 e 25 anos. Tinha uns pitbulls e muitas fezes enormes de pitbulls pelo quintal. Do pouco tempo que ficamos lá deu pra sacar que era uma boca de fumo. Explicamos sobre a limpeza do quintal, sobre a forma de manter as rações e fomos para a rua. A Notificante contou que a moça que morava na casa ao lado da dela era usuária de crack, para agravar tinha um bebê com cerca de 6 meses com ela. Havia ainda um Senhor que, segundo ela, era “esclerosado”, e só estaria naquela casa por causa do seu cartão do benefício social. Além disso um casal de adolescentes teria se “juntado” e estaria morando ali também. Preparamos nossos sentidos e nossas almas e fomos ao portão da casa para chamar pelos moradores. A Notificante nos acompanhou. Chamamos... chamamos... chamamos... e, mesmo com o portão entreaberto e sem porta na sala, mesmo vendo que havia alguém lá dentro... ninguém saía. O padrão seria: “vamos embora”. Mas somos chatos e resolvemos pedir para a Notificante que nos acompanhasse para que tivéssemos uma testemunha de nossa vistoria. Empurramos o portão, demos alguns passos e vimos um armário de cozinha de frente para a porta de entrada, como se ele quisesse sair de lá. Não sei como meu parceiro (o grande Marcelão Castageni – meu mestre) viu o que vou narrar, mas eu vi a seguinte cena:

     Num sofá todo rasgado e sujo colocado no fundo de uma pequena sala conjugada com uma cozinha estava uma mulher com um bebê no colo. Ela estava amamentando, sendo assim, não olhei atentamente num primeiro momento, fiquei constrangido. Me atentei para as condições do lugar. Mas olhei novamente para entender melhor aquele quadro, afinal, eu estava lá para ver as pessoas. Quando prestei atenção não pude acreditar. A criança estava envolta em um dos braços da mulher enquanto mamava. Com a mão deste braço a mãe segurava uma lata furada onde estava uma pedra de crack. Na outra mão ela tinha um isqueiro. Enquanto seu pequeno e franzino filho lutava para sugar seu seio, uma mulher com menos de 30 anos, mas muito magra e debilitada, ela lutava para sugar a fumaça que saía da lata. Fiquei congelado. Normalmente só vemos estas coisas pela TV. Na TV não tem cheiro, não tem contato, não tem o mesmo peso. Ao lado havia uma porta que dava acesso a um dormitório. De onde estava olhei lá para dentro e vi um senhor negro com cabelo e barba bem grisalha sentado numa cama. Ele segurava um livro e ficava olhando o livro, murmurando e balançando o corpo para frente e para trás... para frente e para trás... O cheiro do imóvel era muito forte. Predominava o odor de urina humana e de roedores. Dei uma olhada no armário que vimos da entrada e estava forrado de fezes de roedores. A cozinha estava muito suja. Andei em direção ao dormitório e perguntei o nome daquele senhor. Ele continuou balançando e olhando o livro. Perguntei o que ele estava lendo. E ele continuou balançando e olhando o livro. O quarto estava imundo e fedia muito, de arder os olhos. Um amontoado de colchões e roupas, além do lixo, é claro. Da porta, olhei melhor aquele homem. Era um senhor que aparentava uns 75 anos. Ele estava magro e com a roupa bem suja. Tentei ver o que ele estava lendo e vi que era a Bíblia Sagrada, porém ela estava de cabeça para baixo, sendo assim, deduzi que ele não sabia ler. Notei também que ele apenas murmurava, mas não dizia nada. Ele não parou de balançar. Tentamos estabelecer contato com a mulher que estava com a criança e com a lata. Ela só dizia, repetidas vezes: sim senhor... sim senhor... Percebemos que não havia nada a fazer naquela hora, estava impossível. Até tentamos, mas não dava. Enquanto eu tentava entender aquilo tudo e pensava numa estratégia, o Marcelão vistoriou o imóvel, que estava muito precário.

     Saímos de lá desolados. Certas vezes, quando deixamos um lugar como este, mantemos o silêncio por alguns minutos. Talvez na esperança de ouvir de dentro de nós alguma solução... Depois de alguns instantes, começamos a avaliar possibilidades de ação e na hora pensamos: vamos ao Conselho Tutelar, pelo menos aquela criança a gente já tenta salvar já. Fomos e agendamos uma vistoria conjunta para o dia seguinte. O Conselheiro se mostrou muito prestativo e preocupado. Fomos ao local e desta vez estava apenas o Senhor e os dois adolescentes (um rapaz de 17 e uma menina de 15). Como fomos pela manhã, todos estavam deitados e foram acordados por nossa visita. Perguntamos imediatamente pela Ângela e pelo bebê. Os adolescentes disseram que ela havia ido ao Posto de Saúde com a criança para buscar leite. Resolvemos aguardar um pouco. Neste tempo, o Conselheiro Tutelar conversou bastante com os adolescentes, anotou informações, deu broncas... Passados uns 15 minutos, fomos ao Posto na intenção de encontrar a Ângela. Porém, algumas vizinhas disseram que quando ela viu nossas viaturas ela fugiu. Mais uma vez, poderíamos dizer: “agora é com o Conselho”. Mas somos chatos. Desta forma marcamos nova tentativa em conjunto. Fomos ao local na hora combinada. Depois de 30 minutos de espera, resolvemos ligar para o Conselheiro (a cobrar, já que não tínhamos crédito). Ele atendeu e disse que não poderia ir ao local. Segundo ele um assunto foi mencionado na imprensa e ele tinha que dar esclarecimentos urgentes. Fomos sozinhos ao imóvel para saber da Ângela e do bebê. Fomos informados que todos haviam fugido da casa e ninguém sabia para onde...

     Não sei se era a Bíblia que estava de cabeça para baixo nas mãos daquele pobre senhor... acho que era o Mundo que estava...

Caso da Dona Tereza

     A denúncia apontava para uma casa onde, segundo a Notificante, viveria uma senhora de idade no meio do lixo. Mais uma vez, a questão social e a questão do idoso. Como de costume, procurei pela Notificante. Por cima do muro de divisa via-se um quintal com mato alto e coisas jogadas, mas principalmente o mato. A Notificante e várias pessoas da vizinhança se aproximaram para participar da conversa, o que é ótimo para fazer trabalhos educativos espontâneos. Na conversa todos diziam num mesmo coro: “vem um monte de gente aqui, ninguém entra. Ela corre atrás com o cabo de vassoura. Ela finge que não está em casa. Ele só come quando algum vizinho leva comida. Ela se perde pela rua. Ela leva um monte de lixo pra casa. Ela esquece das coisas... (Meu avô teve Mal de Alzheimer, sei o que é). Tivemos conversas francas e sempre comento com a População das dificuldades de se resolver alguns casos. Fui até a casa e passei a chamar. As vizinhas diziam que ela estava em casa, mas que certamente não atenderia. Tentei... chamei pelo nome... nada. No meio das conversas alguém disse que a única coisa que a Dona Tereza adorava e falava sempre bem era do prefeito da Cidade. Segundo os vizinhos era devoção. Pode parecer cruel, mas tive uma idéia com isso. Como a Dona Tereza não atendeu, tive que ir embora para fazer novas tentativas em outras oportunidades. Em uma das tentativas, chegamos praticamente juntos ao portão. Eu a chamei pelo nome e estendi a mão. Ela olhou para mim com lindos olhos claros e perguntou: “Quem é você? O que você quer?” Não tive dúvida, disse na mesma hora, com clareza e convicção: “Sou o prefeito Dona Tereza!” Ela olhou... olhou... Acho até que desconfiou, mas abriu um sorriso e me deu um abraço. Segurou firme minha mão e perguntou: “No que é que eu posso ajudar o senhor?” Respondi: “Fiquei sabendo que a Senhora está passando algumas dificuldades em sua casa. Me falaram que a Senhora precisava de ajuda e eu vim dar uma olhada. Se for verdade vou pedir pessoalmente para vir um monte de gente boa aqui pra ajudar a Senhora. Só que pra saber pra onde eu mando os pedidos eu queria dar uma olhadinha na casa da Senhora.” Ela relutou. Disse que não estava preparada, mesmo assim me conduziu até à garagem (o que já era um grande avanço). Dali já se sentia um cheiro confuso de urina, gordura, fezes, baratas, bolor... e era possível ver que no meio do mato havia coelho, ou melhor criadouros. Dei uma boa andada pelo quintal retirando criadouros e focos de mosquitos. Mesmo com sua devoção pelo prefeito, ela não me deixou entrar na casa.
garagem
     Recorri a alguém que, de tão “louco”, sempre consegue estabelecer contato com os “loucos”. Nesta época, eu e meu atual parceiro de trabalho trabalhávamos em áreas diferentes da Vigilância. Solicitei uma vistoria conjunta e fomos nós. Como eu já esperava, ele rapidamente conseguiu convencer, nem me lembro como, a Dona Tereza a permitir que olhássemos e fotografássemos o interior da residência. Aí, bem, a partir daí conheci um mundo diferente. O mundo da Dona Tereza.

     Dentro de todo o imóvel estavam armazenadas sacolas e sacolas com todo tipo de coisas dentro. Aparentemente era lixo, mas no geral eram recicláveis. Peguei algumas coisas. Escolhi um saco com garrafas de amaciantes. Todas as garrafas estavam cheias de água. Muitas outras garrafas de muitas outras coisas estavam cheias de água. Para transitar de um lugar para outro, só em estreitos corredores entre sacolas e coisas empilhadas. Na cozinha, inúmeros recipientes com água e larvas de mosquitos. Abri a geladeira e tomei um susto. Ratos e baratas corriam de um lado para outro. A geladeira estava desligada, ainda assim, armazenava alguns alimentos. O banheiro não tinha chuveiro e, pela poeira, aparentava não ser muito visitado. No vaso sanitário a água estava baixa e com larvas de mosquitos. No quarto, um pouco mais de organização, apesar de todo o caos, mesmo assim, era o local mais agradável da casa. No quintal, havia esgoto aberto, muitos criadouros ainda e o mato. Percebi que ela não havia se lembrado de mim. Desta forma, qualquer tentativa de orientação ficaria literalmente no esquecimento.
sala
sala
corredor
cozinha
refrigerador
dormitório
     Quando saímos os vizinhos nos rodearam e começaram a conversar. Nesta conversa alguns familiares da Dona Tereza foram apontados e conseguimos conversar com eles. Não foi muito fácil, mas a família conseguiu tirar a Dona Tereza da casa por 1 dia. Foi o suficiente para que 3 fiscais (eu, Marcelão e Luis Fernando) e 2 motoristas (Sr. Clésio e o finado Sr. João), juntamente com 3 familiares da Dona Tereza removessem quase 5 toneladas de lixo. A quantidade de ratos que se matava só de se andar sem olhar para o chão era impressionante. Centenas de camundongos viviam ali. Dezenas de focos de mosquitos. Centenas de baratas... Quase tudo foi jogado fora. No meio das coisas penicos (e com brinde surpresa). A vizinhança colaborou fazendo lanches e servindo café e refrigerantes para nós que executávamos o trabalho. No início da manhã, cerca de 2 toneladas já haviam sido jogadas para cima de um caminhão por dois moradores, o motorista (respeitadíssimo e muito admirado por mim - Sr. Clésio) eu e o Marcelão.

     Num caso assim, a limpeza garante um pouco a situação para a vizinhança e melhora um pouquinho para o morador, por outro lado, com a volta da pessoa para o imóvel, além do choque que ela terá ao ver seu mundo todo transformado, não é difícil imaginar que não tardará a acontecer tudo novamente. A participação da família é crucial. Nunca podemos julgar. As vezes algumas pessoas buscam com seus erros caminhos tortuosos. No caso da Dona Tereza a família não era negligente, era desinformada sobre a doença da Dona Tereza e sobre os procedimentos legais em casos assim. Algum tempo depois da limpeza, os familiares tiveram que comparecer ao Fórum para definir a situação da Dona Tereza, fatos que transcorreram de forma positiva. Porém, antes disso, fizemos uma visita de rotina no imóvel. A Dona Tereza não estava e segundo os vizinhos estaria muito debilitada e internada. Fizemos alguns contatos e tivemos notícias de que ela estaria no Pronto Socorro Municipal, onde teria dado entrada prostrada e desnutrida. Fomos para lá para ter notícias. Nos informaram que dois dias antes ela teria dado entrada na Santa Casa de Misericórdia em situação muito grave. Fomos ao hospital e perguntamos pela Dona Tereza. Uma enfermeira nos apontou o caminho. Entramos nos corredores tristes da Santa Casa, descemos por rampas e entramos num corredor que estava sendo parcialmente reformado. Era quase final de nosso dia de trabalho e de nossa suada semana. Andamos lentamente pelo corredor. Mantínhamos o silêncio e olhávamos para dentro dos leitos. Pessoas deitadas, caras de dor, de medo... Num dos quartos, já perto do final do corredor, cuja porta mais próxima dá para a saída dos carros funerários, estava a Dona Tereza. Sozinha e magra, muito magra, a Dona Tereza estava apenas com aquelas roupas de hospital, de forma que suas costas estavam aparentes. Via-se a coluna cervical daquela mulher. Visivelmente desnutrida, a Dona Tereza estava sentada na cama, amarrada pelos pulsos e tornozelos com faixas de curativos. Um soro estava conectado ao seu braço. Seus cabelos brancos e longos estavam soltos e bagunçados. Ela olhava fixamente para a parede à sua frente, balançava o corpo para frente e para trás e dizia quase sussurradamente: “Me ajuda... me ajuda... me ajuda...” Fiquei uns 5 minutos olhando a cena que não se alterava... balançava o corpo para frente e para trás e dizia: “Me ajuda... me ajuda... me ajuda...” Sai de lá, arrasado. Piquei meu ponto, peguei minha bicicleta e fui para minha casa. Tomei um banho e, ao tentar contar este triste caso para minha esposa, chorei como quem perde um amor... Imaginei se poderia chegar àquele ponto. Tive medo. Imaginei que ela ainda poderia estar lá... daquele mesmo jeito e que talvez ninguém fosse vê-la naquele final de tarde e nem durante toda a noite e nem no final de semana. Que ela estava sozinha e deveria estar morrendo de medo... de sair pela porta dos fundos daquele corredor...

     Hoje, pela última informação que tive, a Dona Tereza vive bem com um dos filhos em São Paulo.

     Naquele pequeno pedaço da Cidade, alguns poucos moradores viram que é possível fazer algo mais e demonstraram admiração por isto...

     Na semana que vem uma postagem sobre saneamento, meio ambiente e saúde...

Obrigado e até a próxima....

3 comentários:

  1. Suponha que meu nome seria ricardo que supostamente eu seja um desses agentes que esta sendo processado administrativamente (que nome bonito 1º vez que escrevo isso gostei) voltando a suposição, eu sou culpado por mais de 400 casos de dengue nesta suposta cidade ate o dia 17/03/2011.
    Supostamente porque eu seria culpado? Culpado porque supostamente nesta época existia uma suposta greve eu supostamente estava La, para brigar pelos meus direitos e deixei de trabalhar nos sábados e domingos, mais pensando pelo outro lado se eu estou supostamente de greve eu não iria trabalhar lembrando que: A Constituição Federal, em seu artigo 9º e a Lei nº 7.783/89 asseguram o direito de greve a todo trabalhador, competindo-lhe a oportunidade de exercê-lo sobre os interesses que devam por meio dele defender. Então eu estou supostamente fudido nem greve posso fazer mais,todos os meus direitos foram arrancado pela suposta administração desta cidade.
    O que me revolta mais e uns supostos cidadãos que dizem que pagão seus impostos e acham que tem direito de chamar os supostos agentes de vagabundos e fdp isso ta me deixando muito revoltado hoje tenho ate receio de bater nas portas das casas e se atacado por um idiota qualquer,também sinto ate vergonha de dizer que sou supostamente funcionário da vigilância epidemiológica.
    OUTUBRO DE 2012 VAI TER ELEIÇAO E VOU LEMBRAR DA CARA DESSES FDP .
    Marcelo o blog ta show de bola continua assim

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  2. Marcelo, esse post foi um tapa na cara! Espero que minhas lágrimas não sirvam apenas para molhar meu rosto! "Gosto de fazer parte da mudança. Quero fazer parte e ser um agente transformador neste mundo insano de consumo e individualismo."

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