quinta-feira, 10 de março de 2011

As pessoas que ninguém quer ver


IMPORTANTE: Todo o texto foi elaborado por mim tendo por base minhas experiências profissionais na área de Vigilância em Saúde e Meio Ambiente. Os registros fotográficos também são de minha autoria. Quando houverem informações ou imagens de outras fontes, elas serão mencionadas. Não me oponho ao uso deste material parcialmente ou na integra para fins educativos ou para a confecção de trabalhos escolares, porém, por uma questão de respeito, peço que qualquer imagem ou trecho de textos retirados deste Blog mencionem o link:


Obrigado.



     Dando continuação aos assuntos ligados à minha área profissional, tentarei trazer uma série de postagens que terão por foco as pessoas invisíveis. Sim, apesar de parecer coisa da ficção científica, existem muitas pessoas invisíveis na sociedade. Mesmo permeando quase todos os lugares e constituídos das mesmas coisas que nós – os seres humanos – , as pessoas invisíveis existem e são invisíveis mesmo. Elas vivem à margem da sociedade (daí o termo: marginalizados). Você já deve ter visto uma por aí. Estranhou? Como assim!? Visto uma por aí!? Pois é, o fato de você ter visto uma por aí não significa que você a tenha percebido. Perceber um ser humano, repleto de defeitos e qualidades como todos nós, não é tarefa simples. Você pode não estar entendendo ainda. Para mim também é meio confuso. Não sei se percebo as pessoas. Às vezes... também não as vejo... Sabe aquele mendigo que cata papelão e passa de cabeça baixa pela rua da sua casa? Sabe aquelas mulheres que se vestem com sacos plásticos pretos e comem restos de lixo pelas ruas? Sabe aquela senhora que corria atrás das crianças perto do cemitério e vivia numa casinha quase caindo?... Então, eu vi estas pessoas... estive nas casas delas... falei com elas... chorei com elas e por elas, ouvi suas histórias...


     Algumas profissões dão a oportunidade para que algumas poucas pessoas possam se colocar no papel de fazer o bem para transformar positivamente a vida de terceiros. Para algumas poucas pessoas, ou o destino, ou Deus, ou suas escolhas de vida... ou sei lá... alguma coisa faz com que elas tenham a chance de transformar para melhor suas próprias vidas e a vida de muita gente (ou de pouca gente)... mas a chance da transformação é dada. Destas poucas pessoas que recebem esta oportunidade, outras, bem menos ainda, aproveitarão esta chance de maneira eficiente. Falar de Jesus e de fé é lindo, todo mundo gosta de falar. O duro é adotar uma mínima parte do que ele ensinou. Difícil é entender qual o propósito da vida. Passar por ela!? Ser um idiota (ou uma idiota)? Não se preocupar com o próximo!? Ter para ser? Fazer fofoca!? Ser egoísta? É isso!!? Então fu...!!!!!

     Minha profissão não é das mais queridas para as pessoas. Normalmente não é o objetivo de ninguém. Para ser sincero nunca havia passado pela minha cabeça. Dificilmente você escutará uma criança dizendo: “Mamãe, quando eu crescer quero trabalhar na Vigilância, quero pegar ratos, matar mosquitos, entrar em buracos de esgoto, caçar escorpiões e cobras, passar venenos... é meu sonho mamãe!”. Menos ainda você ouvirá isso de estudantes do ensino médio. Nos cursinhos nunca ouvi ninguém dizendo: “Vou ralar agora nesta reta final pra passar no vestibular e fazer o possível pra me formar e trabalhar em atividades de campo da Vigilância em Saúde.” Nas universidades... aí as universidades... pouca gente, e põem pouca nisso, participa da realidade da população... não conhecem os lugares onde moram e não fazem parte da política ou dos fatos locais (salvo raras e eventuais pessoas sinceras e convictas de seus princípios), sendo assim poucos universitários tem a vontade de trabalhar em atividades de campo ou em prol da população. Muitos dos que se envolvem na política assumem a reprodução da velha e falida política partidária profissional, não querem mudanças, querem manter as regras corruptas e os benefícios escandalosos.

     Trabalho na área de Vigilância em Saúde há quase 10 anos. Passei 5 anos na Sanitária e agora faço parte de uma equipe muito peculiar dentro da Vigilância Epidemiológica. Trabalhar nesta equipe foi opção minha. Vi um grupo de bons profissionais fazendo coisas fantásticas com pouquíssimos recursos. Vi pessoas comprometidas e dedicadas ao trabalho que faziam e executavam projetos bons para a População. Minha rotina é bem agitada. Entro em várias edificações, residenciais e comerciais, de alto e baixo padrão, no perímetro urbano e rural e me deparo com as mais distintas situações todos os dias. Para quem faz trabalho de casa-a-casa do combate à Dengue, o número de casas visitadas por mês é impressionante, podendo passar das 500 casas. Meu trabalho é com todos aqueles bichos que já fiz postagens e mais alguns que nem deu tempo de postar ainda. Tanto nas casas quanto nas questões com pragas ou espécies da fauna sinantrópica, há pessoas envolvidas. Pessoas, como todo mundo já sabe, são diferentes, são difíceis e não há duas iguais (e nem pense em fazer piadinhas com gêmeos! Não são pessoas iguais.). Em muitos dos casos, a situação que leva uma equipe de Vigilância à uma residência é apenas o começo de uma grande questão social e, muitas vezes, desumana.

     Com o passar dos anos notei ser crescente o número de processos envolvendo pessoas em condições muito precárias de vida que chegam aos balcões dos protocolos públicos. A Vigilância acaba sendo o setor onde todos querem se apoiar e onde recaem os problemas já em fase avançada de complicação, por exemplo: Normalmente os bichos aparecem numa casa em decorrência das condições precárias de um imóvel ou por conta das condições do próprio imóvel onde ele apareceu. No lugar de se queixarem do imóvel com problemas, as pessoas se queixam do bicho que apareceu. Aparece uma aranha numa casa. O morador chama a Vigilância e começa a falar um monte para quem atender sua reclamação.

Alguns casos são assim:

(versão telefônica)

Notificante diz: “Escuta aqui! É da Vigilância Sanitária!?”
Atendente responde: “Não, aqui é da Vigilância Epidemiológica.”
Notificante diz: “É da que cuida dos bichos!?”
Atendente responde: “É.”
Notificante diz: “Escuta aqui! Entrou uma aranha enorme na minha casa. É um absurdo! Aqui do lado tem um terreno cheio de mato, entulho, os vizinhos tacam lixo, tem um cara que põem um cavalo, de vez em quando eles botam fogo...”
Atendente questiona: “A aranha está viva?”
Notificante diz: “Lógico que não! Batemos com vassouras, meu filho tacou pedras... aí pusemos álcool e metemos fogo.”
Atendente responde: “Certo. Senhora, pedirei para que uma equipe vá até sua casa para tentar identificar a aranha, ver qual é o problema e para passar algumas informações. Para isso preciso abrir uma ocorrência. Qual seu nome? Endereço completo? E telefone pra contato?
Notificante diz: “Nem precisa, já joguei a aranha fora. Só quero que olhem o terreno. Meu nome num vai sair em nenhum lugar pro dono do terreno ver não, né?”
Atendente responde: “Os fiscais devem manter os notificantes em sigilo, mas, na verdade, a reclamação do terreno a Senhora precisa fazer pessoalmente ou pedir para alguém fazer o protocolo lá na Prefeitura. Aqui é uma seção da Saúde. Até encaminhamos processos para lá, mas seu problema é limpeza pública. A aranha só apareceu por causa das condições do terreno, certo? Sendo assim é bom a Senhora ter o nosso atendimento e também fazer o protocolo do pedido de limpeza do terreno.”
Notificante diz: “Tá vendo só, é o que todo mundo fala mesmo: Vocês são tudo um bando de vagabundos!!!! Ficam empurrando o serviço! Aparece uma aranha na minha casa e ainda tenho que me expor e reclamar do terreno... num vou dar nome nenhum não e nem quero que venha ninguém aqui. Vou por fogo no terreno quando o mato secar e que se dane!”

     Mesmo não sendo a regra, o comportamento sugerido acima é comum. Muita gente trata todo funcionário público como vagabundo. Mesmo quando nitidamente o fator causador do aparecimento de um bicho está relacionado com as condições precárias de um imóvel vizinho, as pessoas só se revoltam com o Estado e seus funcionários, ou servidores (se preferirem), mas não tomam as medidas legais contra os proprietários destes imóveis, que são os verdadeiros vilões. Assim como registrar Boletins de Ocorrências norteia as ações da Polícia no combate ao crime, os protocolos junto aos órgãos públicos competentes e o papel exigente e fiscalizador dos cidadãos é que garantem que certos espertinhos não possam ter um monte de lotes e imóveis cheios de problemas na Cidade e que quase nunca sejam multados (e que o Estado e seus agentes trabalhem efetivamente pelo bem coletivo).

Só para informação: Demandas de queixas e reclamações não devem ser cobradas e, até onde sei, não são. Desta forma não há desculpas para não reclamar e não exigir seus direitos.

     Há alguns passos a se seguir para ver seus pedidos “andando”:

é necessário ter paciência e entender que o Estado, de maneira geral é super burocratizado para evitar fraudes. O que, obviamente, facilita as fraudes e tem como única consequência tornar o Estado lento e engessado, dificultando o trabalho dos profissionais que raramente recebem treinamento adequado para lidar com a “burrocracia” do Estado.

não ache que tratar um funcionário público como um idiota ou com grosseria agilizará as coisas. Você pode estar falando com um bom profissional e sendo injusto com seu comportamento. Normalmente, o funcionário público precisa cumprir uma rotina de preenchimento de formulários, processos, memorandos, check lists, e tantas outras coisas que ele não está sendo lento para tornar sua vida pior. Ele apenas está tentando fazer seu trabalho para que ambos, você e ele, continuem suas vidas em paz. Se você perceber que é corpo mole, denuncie!

faça seus pedidos por escrito (em 2 vias) e exija protocolos, carimbos e assinaturas de recebimento. Não aceite acordos verbais, sempre faça por escrito.

não basta fazer a solicitação, você precisa acompanhar o andamento do processo. Peça informações pela internet, por telefone e até pessoalmente. Demonstre interesse.

se sua demanda não for atendida ou se você acreditar que o problema não foi adequadamente sanado, você deve cobrar novas providências. Se isto não ocorrer, busque informações no Ministério Público ou com um(a) Advogado(a).

se o problema for resolvido mas voltar a se repetir, repita os procedimentos até estourar o saco do proprietário e ele levar tantas multas que será melhor vender ou utilizar o imóvel. Assim tanto o notificante quanto as equipes de fiscalização terão mais tranqüilidade.

seus pedidos devem ser feitos nos órgãos competentes. Não adianta procurar favores políticos para ver seus pedidos atendidos. Como cidadãos, todos temos o direito de ver nossas demandas sanadas. Os políticos devem apenas garantir o bom funcionamento da máquina pública através da fiscalização que lhes é dever (muito pouco cumprido). Se você é merecedor de uma multa, tenha dignidade e pague, não barganhe seu voto!

     Esclarecidos estes importantes pontos, retomemos o assunto desta postagem... as pessoas invisíveis.

     Tanto pela Vigilância Sanitária quanto pela Epidemiológica, ano após ano venho me deparando com situações que exigem muito equilíbrio emocional e uma rápida tomada de decisões. Casas denunciadas, supostamente por problemas de limpeza e questões envolvendo ratos e outras pragas, acabam sendo na verdade tristes lares de pessoas completamente sem condições de manter suas vidas de forma adequada. Dependentes de álcool e de drogas, idosos abandonados pela família ou mantidos à míngua por causa de uma pensão, pessoas com transtornos mentais e várias outras situações existem aos montes nas cidades modernas e exigem soluções dos Agentes públicos. Não há dentro da estrutura pública mecanismos eficientes e preparados para lidar com estas questões. Aliás, geralmente, a estrutura pública é ruim, são alguns poucos funcionários engajados e compromissados com seus serviços que fazem a coisa funcionar.
quarto-banheiro-cozinha
     Me considero um destes profissionais responsáveis. Mais que isso, participei com meu suor da retirada de muitas e muitas toneladas de lixo e entulho de dentro de casas e quintais. Me deparei com situações onde vi que se eu não me propusesse a fazer o trabalho braçal e os encaminhamentos necessários, ninguém o faria. Estive em lugares onde os verdadeiros responsáveis pelo atendimento tinham nojo de entrar. Participei do resgate de vidas que estavam completamente deterioradas. Fiz tudo isso e posso contar nos dedos das mãos quem foram meus verdadeiros parceiros.

     Para algumas pessoas, melhor seria esconder as casas sujas e sumir com seus moradores porcos. Para o funcionário público cansado e acomodado, sua única obrigação é preencher papéis e encaminhar burocracias, todas as vidas que passam por suas mãos são apenas transformadas em números e registros, nada mais. Mesmo quando ele vai fazer uma atividade destas, vai de má vontade e faz tudo no atropelo. Como estamos lidando com vidas, não é possível mensurar qual vale mais, desta forma, se for possível tentar faze-la melhor, porque não? Porque se transformar num ser frio e mecânico que não sente nada ao ver o sofrimento humano? Poderia fazer como a maioria dos hipócritas com aquele péssimo discurso diante de desgrasças: “É nessas horas que a gente vê que é feliz e reclama de barriga cheia.”... então é pra isso que serve ver alguém em condições péssimas de vida!? Pra se sentir feliz!? Pra ver que a própria vida é melhor que a de um pobre coitado!? Que egoísmo...


a fé...
     Seguirei uma seqüência de relatos de fatos que ocorreram em trabalhos de campo que fiz na cidade de Araraquara (interior de São Paulo). Mesmo tendo ótimos indicadores de nível e qualidade de vida, questões sociais, de saneamento e de saúde borbulham nas mais diversas áreas do Município. Maiores inclusive que a capacidade de atendimento. Imagine nas cidades que estão na outra extremidade destes indicadores.

     Os casos que relatarei são de atendimentos nos quais as questões de Vigilância em Saúde propriamente ditas eram um pormenor.

Caso Maria da barba

     Sempre aberto por um notificante cujo nome, endereço e telefone não existiam, a casa onde residia a Dona Maria, conhecida por alguns como Maria da Barba ou Maria Louca, era alvo constante destas denúncias. Hora por causa do número de gatos, hora por causa do mau cheiro, hora por causa de água parada ou de ratos... sempre havia algum motivo para as denúncias. Não que de fato não houvessem os motivos. Eles existiam aos montes. A casa estava mesmo muito ruim. Havia trincas que possibilitavam ver o outro lado. Não era necessária qualquer habilitação em engenharia para achar que a casa colocava em risco os moradores. O esgoto era de “manilha” e estava bem danificado e entupido. Na casa, além das 3 pessoas, havia uns 12 gatos e 2 cães. Dadas as condições do imóvel, a limpeza era complicada, desta forma, o cheiro era mesmo bastante forte... uma mistura de fezes e urina de bichos e humana. Havia muitos pontos com rações e comidas para os gatos. Nestes pontos havia indícios de que o local não era higienizado há muito tempo, pois estavam engordurados e encrustados de restos de comida, cheiro que também se sentia pelo ar. Os móveis estavam bem deteriorados e sujos. Num quarto todo embolorado havia um colchão e muitas roupas jogadas. A cozinha estava bem suja e cheia de restos de comida. A casa não possuía laje e uma parte dos fundos já havia caído.
gato
     Na primeira vez em que estive lá, fiquei pensando por alguns instantes: Como uma pessoa chega a isto? Como pode viver assim?


dormitório
dormitório
     Além de observar minuciosamente o imóvel e suas condições, é necessário interagir com os moradores para tentar deixa-los à vontade e minimizar os constrangimentos de uma fiscalização. Esta interação requer boa vontade, percepção, talento e sobretudo respeito. Depende desta interação a chave para se desenvolver ou não um trabalho educativo, base de toda a Vigilância em Saúde, e para ter acesso livre ao local em futuras vistorias de acompanhamento. Se um profissional de campo ganhar a confiança de seu público, ele conseguirá causar algumas transformações e seu trabalho fluirá mais harmoniosamente.
teto do dormitório
     Enquanto observava o imóvel busquei conversar com os moradores de maneira bem popular, usando palavreado simples e descontraído. Percebi que um homem com cerca de 60 ou 65 anos se expressava muito bem, era bem ponderado e aparentava algum problema sério de saúde. A Dona Maria, ao contrário do que eu imaginei, conversava bem e demonstrava um bom raciocínio e memória, além de parecer muito franca. Havia também a filha da Dona Maria. Esta conversava com um pouco mais de dificuldade. Ficava facilmente agitada e nervosa. Tinha muito medo de imaginar que poderiam retirar seus gatos de lá. Este assunto era praticamente proibido. É muito importante para o profissional de campo respeitar as diferenças e decodificar seu campo de ação e até onde vão seus limites reais em cada situação.
gato 2
     Durante a vistoria fui fotografando todo o local e conversando com os moradores. Fui fazendo perguntas pessoais sobre as condições de saúde dos 3 e sobre atendimentos que eventualmente eles teriam pelo SUS (e aí engloba tudo, inclusive as vigilâncias... por isso o nome Sistema Único).
cozinha
     Segundo os relatos, tirando a filha da Dona Maria, que freqüentava a rede municipal e andava com suas consultas e medicamentos em ordem, os outros dois casos eram bem preocupantes. O homem era diabético e hipertenso e se auto medicava e a Dona Maria não fazia qualquer acompanhamento, exceto quando com dores ou doente.

     Burocraticamente falando, era só fazer uns papéis, encaminhar e pronto. Mas e aí? Não dava para fazer mais nada? As vezes não dá. O que é muito triste.

     Naquela hora só tive uma idéia. Queria ensina-los a limpar a casa. Algum padrão teria que ser estabelecido ali. Algum limite teria que ser estabelecido. Algo deveria servir como moeda de troca. Do jeito que a coisa estava não poderia ficar. Tentamos negociar a permanência dos gatos atrelada à limpeza periódica do imóvel com produtos adequados.
dormitório-cozinha
     Uma conversa destas pode durar horas, pode durar meses, pode nunca acabar. Para minha sorte, não sei se certas conspirações universais agem em nosso favor, mas naquele dia, todos estavam em sintonia. A conversa fluiu muito bem. No começo foi difícil convence-los de que a água sanitária custava menos de R$1,00 e que o detergente menos ainda. Depois conseguimos combinar algumas melhorias. Todos se comprometeram a ajudar na limpeza. A renda deles não era das piores. Dava para viver. O problema estava na auto estima. Chegamos num local onde as pessoas haviam desistido delas. Cada uma do seu jeito e com seus problemas, mas no mesmo barco.
comida para os animais
     No decorrer das conversas, perguntei sobre a história de vida da Dona Maria. Perguntei desde quando ela morava naquela casa. Ela não mudava sua expressão. Conversava sempre com o mesmo olhar. Me contou que morava ali desde muito nova. Toda sua família morava ali. Ela então começou a me contar passagens marcantes de sua vida. Lembrou que ainda nova perdeu uma filha. Graças a isso surtou, entrou em depressão, não conseguia lidar com a dor da perda. Seu pai, ao ver tal situação, internou-a numa fazenda manicômio. Perguntei quais lembranças ela tinha de lá. Ela me disse que vieram e a levaram numa camisa de força. Ao chegar no local ela disse se lembrar que a primeira coisa pela qual passou foram os choques na cabeça. Segundo ela, depois disso, ela nunca mais ficou “normal”.
demos uma varrida na sala
     Não é fácil ouvir certas coisas e não se emocionar. Não imaginar o sofrimento de uma mulher que perde um filho e ainda é torturada. Mais emocionante ainda é enxergar um ser humano lindo e cheio de amor em alguém onde as pessoas não vêem nada.

     Ao terminar meu trabalho de vistoria e levantamento no local, pedi para tirar uma foto dela. Pedi que ela desse um sorriso bem bonito para eu fotografar. Nesta hora, na mais pura sinceridade, ela me disse: “Eu não sei sorrir.” Nunca me esquecerei desta frase. No hora fiquei muito comovido.
Dona Maria em sua casa
     Voltamos mais algumas vezes na casa deles e fizemos uma série de encaminhamentos oficiais. Notamos melhoras significativas na casa, porém as condições estruturais do imóvel não ajudavam.

     Considerando ser a semana do dia internacional da mulher, presto esta homenagem a Sra. Maria. Por quem me emocionei ... por quem chorei. Apesar de invisível para muitos, tive a chance de ver a Dona Maria da barba e de fazer algo por ela, mesmo que pouco.
um tímido sorriso de uma mulher sofrida
     Hoje ela é falecida, a casa foi demolida e sua filha e seu cunhado vivem numa instituição para idosos...


Dona Maria... faleceu cerca de 1 ano após esta foto

     Na semana que vem, dois casos. O da Sra. Tereza e o da Ângela. A Sra. Tereza tinha mal de Alzheimer e vivia sozinha e a Ângela era uma mãe dependente de crack com um recém nascido.

Obrigado e até a próxima....

6 comentários:

  1. Parabéns, adorei a postagem, fiquei emocionada, ah e aquela reclamação por telefone? Ficou igual mesmo, quantas eu recebi assim...

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  2. Puxa Marcelo minha profunda admiração e respeito por ti!!! Essa parte de olharmos para a desgraça dos outros e agradecermos a vida q temos é realmente o sentimento mais egoista q há!!!
    Parabéns!! Seu blog é muito bom!!!!

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  3. É! Temos praticamente o mesmo tempo de serviço! Muitas vezes me sinto impotente perante muitas situações! Quantas e quantas vezes saí das residências com o sentimento de que o meu serviço não tinha sido completo! Mais do que agendar um caminhão e limpar um quintal! Mais do que encaminhar problemas que eram tão gritantes que impossível era não encaminhá-los!Terrenos que de tão abandonados, pareciam ter até árvores nativas, "crateras" nos asfaltos, "árvores de cupim", etc!
    O problema é quando temos pessoas nos bastidores que, a toda hora, nos podam nas atitudes e repetem como disco riscado:-"Isso não é da nossa alçada!" E o pior, a experiência e a consciência sabem que são! Difícil é vc ver essas "pessoas invisíveis" e ser obrigado hierarquicamente a fechar os olhos! Uma hora lhe dizem que é caso de promoção social, outra hr, caso de polícia, conselho tutelar, que tais atitudes fecharão as portas de determinadas residências no futuro, enfim, as desculpas são muitas, mas o DESGOSTO que fica n'alma de quem sabe e quer agir pra transformar o cenário e é impedido É O MESMO! Vc sabe bem do que estou falando, afinal, condições melhores de trabalho, foi uma das coisas que te deixou em evidência!!!Mas aqui entre nós, quando queremos, mesmo que não seja como pensávamos, acabamos longe dos olhares acomodados que só sabem externar, "-TRABALHEM, TRABALHEM, TRABALHEM!"fazer a diferença! PARABÉNS!!!!

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  4. Excelente postagem Marcelo,pudera todos os funcionários de saúde pública tivessem a mesma cabeça aberta,franca e preocupada com as questões sociais e não em meros preenchimentos de boletins e produtividades.Parabéns e saiba que você é uma das pessoas que mais admiro dali da Vigilância Epidemiológica.

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  5. coloquei olink do teu blog no meu site,ta lendo a tribuna kke veia ta colocando a culpa nos agente q faltarao o arrastao do ano passado pela epidemia desse ano que belez em http://www.mundumovie.com/

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  6. Oi xará, gostei muito do seu relato, desculpe o palavreado mas é mesmo fodástico. Quem não conhece os arcabouços da mente humana não imagina que é sim possível de chegar nessa situação e tantas outras deploráveis.... O que fazer? Finalizar seu relatório e proceder com paliativos? E a alma humana? E a dor e o sofrimento? Você xará, pode ter ctz, não é dos que passam indiferente... Parabéns

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